Música Marginal e o Stablishment

abril 14, 2008

 

Meu primeiro post aborda o preconceito em relação a estilos musicais marginais e a incompreensão sobre seu contexto de composição. Ele é estruturado à luz da condenação de uma produtora de funk a pagar multa por danos morais por ter lançado, há quase dez anos, uma música supostamente ‘violenta’.

Música Marginal e o Stablishment

Uma matéria incomum ocupou a Justiça (e a Imprensa) brasileira no fim de março: a 7ª Vara Federal de Porto Alegre condenou a produtora de funk Furacão 2000, do Rio de Janeiro, a pagar R$ 500 mil reais por danos morais por conta da música “Tapinha não dói”, hit do ano 2000. A alegação da Justiça Federal: a letra da música representaria uma agressão às mulheres, através de uma visão preconceituosa que banalizaria a violência. O tema foi debatido nos meios de comunicação por juristas, jornalistas, ongueiros, blogueiros, adeptos e detratores do estilo.

O preconceito, nesse caso, foi demonstrado pela Justiça. Parte da sociedade que acusa a devassidão e a falta de profundidade das letras de funk não consegue compreender seu contexto de produção e sua inserção em nossa cultura – sim, música marginal também é cultura. Não, marginal não é feita por bandido, marginal é tudo que está à margem, fora do stablishment em voga. Marginal é toda forma de cultura localizada fora dos padrões dos ‘bons costumes’ propagados e reproduzidos pelos diversos estratos sociais.  

Se o funk – desde seus primórdios nova-iorquinos aos bailes cariocas – é extremamente politizado (ao denunciar a violência contra os excluídos ou incitar ao confronto) ou agressivamente permissivo (pelas letras de manifesto apelo sexual), seria proveitoso questionar suas razões. Não é curioso um gueto passar a ter voz, descrever sua realidade, tomar conta das festinhas da zona sul, fazer produtores mais ou menos estabelecidos lucrarem ao agregar freqüentadores que ‘estão na moda’ e depois ser condenado a pagar por ter causado danos à moral vigente? Posso compartilhar diversas críticas ao funk (como a falta de vontade de tomada de consciência para mudar a própria situação, a variação insossa das batidas, que se resumem quase sempre à mesma programação), mas não há como não assumir que, se as letras só sabem falar de um sexo descomprometido, animalizado, que transforma os seres em máquinas que não podem falhar para não perder a credibilidade, com relacionamentos fluidos e indiferenciados (força um pouco e pensa em Bauman), é porque quem compartilha essa realidade não tem acesso a outras formas simbólicas, que permitiriam uma abstração sobre o cotidiano e, conseqüentemente, levariam a outros temas. Ou você acha que são oferecidas muitas escolhas?

O funk choca, não? Sem adentrar em comparações estéticas ou musicais, mas analisando apenas as acusações, observemos. Bater em música marginal é simples. Imagine o choque que não provocou Elvis Presley, com aquela dança ‘com apelo sexual’, ‘selvagem’, cantando uma música ‘depravada’, nos anos 50, frente ao conservadorismo, o mesmo que condenava Jerry Lee Lewis e tantos outros, quando o rock era marginal.  Imagine o estrago causado nos anos 70 pelo punk, uma resposta do submundo ao ‘papo cabeça’ do rock progressivo. Caras de roupa rasgada, moicanos, tocando muito pouco ou quase nada, cuspindo na platéia, quebrando os próprios meios de produção, com uma agressividade até sem razão, refletindo a falta de perspectivas de uma geração desempregada e relegada a crimes fortuitos. Hoje é cult. Já foi marginal, ‘apelativo’, ‘depravado’, ‘baixo nível’, ‘imoral’, etc, etc.

Se ‘Tapinha não dói’ foi condenada uma década depois do lançamento a R$ 500 mil (com correções monetárias o valor pode ultrapassar R$ 1 milhão de reais [!!!]), imagine quando os magistrados conhecerem o Colibri (aquele do ‘Bolete’, do ‘Carrinho de pipoca’….) ou a Tati Quebra Barraco. Vai o PIB nacional da última década em indenizações por danos morais. Deixa só a Justiça ouvir ‘Dako’.

Analisando a letra, “Tapinha não dói” não é preconceituosa, não carrega apologia à violência nem submete a mulher aos caprichos de um pretenso macho-dominador. Mas dar um tapinha em música marginal é fácil. Então que tal condenar Jimi Hendrix por lançar ‘Hey Joe’ em 67, já que sua letra descreve o assassinato de uma mulher pelo marido que a flagra com o amante na cama e em seguida foge para o México? E condenar os Ramones por lançar ’53rd and 3rd’? Esse é o título da música que se refere a um ponto de prostituição nova-iorquino, que canta as aventuras de um garoto de programa que mata a navalhadas seu cliente, um travesti, só prá provar que é muito macho. E condenar a ‘Vaca Profana’ de Caetano? Não questiono aqui o instante poético, a qualidade musical, a profundidade ou o conhecimento formal do letrista/músico. Mas, como diz o cantor de ‘Dona das divinas tetas/Derrama o leite bom na minha cara”: “(…) Eu também sei ser careta/De perto, ninguém é normal”. Bater em bêbado é fácil, não?

Segundo a Folha de S. Paulo de 29 de março, a mesma ação pedia a condenação da Sony Music pelo lançamento da música “Tapa na cara”, do Pagodart, e da União, por permitir que as músicas chegassem ao público. Mas só a Furacão 2000 foi condenada pela Justiça Federal. A corporação (do tapa) foi inocentada, o produtor independente (do tapinha) não.